segunda-feira, 22 de agosto de 2016

Descendência

            Não me surpreendi por mais um dia parar naquela mesma campina e vestida com aquelas roupas que não eram as minhas e no tempo que não era o meu, já esperava o menino aparecer com suas bochechas coradas e seus olhos quentes, mas ao invés dele veio a mim um rapaz, com os mesmos olhos, traços e gestos do menino; era ele sem dúvida, trazia na mão uma harpa dourada e sorriu sentando-se à minha frente como no dia anterior.
              " Está diferente hoje, crescido." Eu lhe falei.
             " São tão ligados à forma, mas fico feliz que já me reconheça, esse é um grande passo, um passo para a essência."
              " Linda harpa! É um instrumento com um dos sons mais lindos, como se não tivesse sido criado por humanos"
               Ele sorriu e pôs-se a tocar, e a melodia era de imensa doçura, nunca ouvira nada igual, o que torna difícil descrever por não haver comparação com nenhuma outra no meu mundo conhecido, nem no canto dos pássaros mais melódicos, apesar de lembrar muito a beleza do canto dos pássaros, porém de nenhum que de fato existisse. E a sensação que me causou também não era tão simples de ser dita, entrei em estado contemplativo, de plena beleza, como se algo nascesse dentro de mim, algo como o amor nos primeiros dias. E o sorriso e as lágrimas se misturaram na minha face.
             " Esse é um dos papéis da música, tocar os sentimentos de tal forma que seja algo primeiro. Meu pai também tem uma harpa, a dele toca as estações, as muda, as cria. Faz o mesmo com os sentimentos, com uma melodia para se alegrar, chorar e sonhar. Parecemos muito com os nossos pais, o nosso modo é apenas a interpretação da forma que eles nos deram. Meu pai dá a abundância da terra, eu dou a abundância da alma. Minha mãe nutre a terra, eu, a alma, ela é um rio, assim como eu, pode ser a vida, como a morte. Depende de que lado do rio você está. Ou crer que o amor, os sonhos e a esperança só tem esse lado encantador da bela harpa? Quando eles transbordam, às vezes eles matam, matam para nascer, não há uma face sem a outra. Quantas guerras não são capazes para minha realização?"

             Fiquei ali, parada, enquanto ele desaparecia, e em tempo, eu voltava para o agora.

Continua...

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